10 anos

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A famosa pergunta: “onde você se vê daqui dez anos?”

Uma pergunta na qual nunca pensei. Talvez nunca quis pensar. Até alguns anos atrás, nunca precisei fazer planos. Nascido e criado com segurança financeira, se tudo desse errado, teria a barra da saia da mãe para voltar.

As perspectivas para dez anos eram tantas que era impossível fazer planos… Tantas oportunidades! Coisas que eu jamais imaginaria, portas que eu não sabia que existiam se abrindo…

Oportunidades de emprego pouco ortodoxas. Quantos médicos já passaram por navios de cruziero, por plataforma de petróleo, pelo exército, por ambulâncias…

Medicina apresenta muitas portas. É impossível ter uma decisão completamente racional, pesar todos os prós e contras de uma escolha, afinal de contas, o mundo é dinâmico e fluido. O que parece uma excelente escolha hoje, talvez daqui dez anos prove que foi completamente errada.

Mas eu nunca me perguntei onde estaria daqui dez anos porque as oportunidades eram tantas e eu tinha certeza de que seriam diferentes e únicas.

Isso também era verdade nos meus relacionamentos. Sem apego à um emprego ou à uma pessoa, havia infinitas possibilidades, infinitos caminhos, infinitas escolhas, infinitos “eu daqui dez anos”.

Claro que cada porta escolhida significa outras tantas fechadas. Escolhi o caminho da estabilidade. Um relacionamento, um emprego fixo, um lar, uma cachorra…

O problema é que o “eu daqui dez anos” parece muito mais previsível. Ainda há infinitas portas, infinitas possibilidades e infinitas escolhas, mas por algum motivo elas parecem um infinito menor do que eram.

Talvez seja a inércia, tão amiga quanto inimiga. A zona de conforto, que é… confortável, oras! Ou deveria ser.

Por que a perspectiva da casinha de cerca branca parece tão chata? Por que eu namoro a idéia de ir para algum lugar longe do conforto? Explorar o desconhecido é tão humano quanto ficar na zona de conforto. Voltamos à inércia. Inércia de ficar parado no conforto, inércia de continuar procurando o desconhecido.

O “eu daqui dez anos” é um filho de um pessimista agora, ele tem tudo para ser quem ele quiser. Pode ser um explorador dentro de casa, com as infinitas oportunidades que aparecem a cada dia. Mas ele parece querer só ficar sentado na mesmice, olhando o relógio, vendo os minutos e horas derretendo, vendo as portas fechadas e não as abertas. Reclamando disso. Reclamando daquilo.

A falta de perspectiva é o que vai acabar com a humanidade como a conhecemos. É o que vai deixar Galileus, Armstrongs, Teslas de cabeça baixa, fones de ouvido como grilhões amarrando à uma tela brilhando azul, por sua vez presa à uma parede. E o cérebro desligado, vendo os dias passarem, esperando um messias, uma epifania, um meteoro…

Transferindo

Em um plantão noturno na ambulância fomos acionados para realizar uma transferência inter hospitalar, ou seja, levar um paciente de um hospital para outro. Via de regra levamos pacientes graves de um hospital pequeno, com poucos recursos para um hospital de maior porte, com os recursos necessários para o adequado tratamento do paciente.

A ocorrência dessa noite era de um recém – nascido prematuro.  Havia nascido e feito uma insuficiência respiratória, precisando ser entubado e necessitando de um ventilador mecânico para auxiliar na respiração. A criança iria de um hospital regional no qual a UTI neonatal encontrava -se lotada para outro hospital que tinha uma vaga de cuidados intensivos disponível.

Chegamos no hospital de origem e a criança, com menos de 24h de vida, estava dentro da UTI. Haviam “criado” um sétimo leito na UTI de seis leitos. A criança, que havia nascido antes do tempo e por isso não tinha peso nem tamanho normais, estava em uma incubadora, estável, aceitando bem a ajuda dos aparelhos para respirar.  Não usava remédios para manter a pressão normal, nem remédios para ficar sedada. Cada vez que ela puxava o ar, o aparelho “empurrava ” um pouquinho a mais de oxigênio.

Passamos para a nossa incubadora, desligamos do ventilador do hospital e levamos até a ambulância com um ambu, que é uma bolsa de ar, a qual manualmente usamos para ajudar a respiração.

Chegando na ambulância montamos nosso equipamento para transformar em um leito de UTI móvel. Incubadora ajustada, ventilador conectado e funcionando com os parâmetros necessários, bomba para infusão de solução de hidratação via venosa e aparelhos para monitoramento de sinais vitais, ou o que tínhamos disponível, já que não temos como medir de forma automática a pressão, apenas manualmente. Oximetria para monitorar o oxigênio no sangue e monitor cardíaco para acompanhar a frequência cardíaca.  Tudo ligado, funcionando, paciente estável, hora de iniciar a viagem.  Uma viagem de uns 150km pelas BR, naquele estado de conservação, com mais buracos que asfalto, cruzando uma serra, tudo em pista simples, praticamente sem iluminação, por um trajeto que o condutor não conhecia.

Com o início da viagem, o início dos problemas e da tensão. O oxímetro não ficava nos dedos do bebê, a trepidação da viatura fazia com que o aparelho não conseguisse ler de forma fidedigna os parâmetros. Sem ter com fixar de forma segura o bebê dentro da incubadora, cada manobra mais brusca para desviar de um buraco que surgia no asfalto escuro, a chance de o bebê se mexer, sair da posição e o tubo que o ajudava a respirar sair do lugar, obrigando a parar a viatura e entubar novamente, no ambiente nada ergonômico do salão da ambulância com uma incubadora. Depois da primeira freada, passei o resto da viagem com as mãos dentro da incubada, tentando evitar que o bebê pulasse ou corresse de um lado para outro dentro da incubadora. Com a trepidação o ventilador apitava, disparando algum alarme, visto que estava dando suporte para a respiração do bebê, o ventilador depende da”leitura” do paciente iniciando a respiração, para ele dar o suporte. Com os parâmetros baixos por causa do peso do pacientinho, a cada trecho de asfalto ruim, o ventilador não conseguia entender o que estava acontecendo, se era o bebê puxando o ar. Ao mesmo tempo que o ventilador disparava o alarme, o oxímetro, que usamos como parâmetro para o bom funcionamento do ventilador, também saía do lugar e deixava de funcionar. Assim iam alguns longos segundos até o asfalto acalmar e a trepidação diminuir e os aparelhos voltarem a funcionar à contento.

E assim se passaram as horas e os quilômetros até chegar ao hospital de destino. Um paciente grave, que acabara de passar praticamente um décimo de sua vida até então sacolejando em uma ambulância, sem o melhor suporte que poderia ser oferecido. Talvez agora, na UTI do hospital de destino ele recebesse o cuidado ideal, em uma cidade longe de casa, onde a família teria que encontrar lugar para ficar, visto que não fica acompanhante na UTI, uma mãe longe do círculo familiar e de amigos. Uma criança que, via de regra, apresenta melhora importante em 3 ou 4 dias, tendo alta da UTI, para então encarar a viagem de volta para a enfermaria do hospital de destino.

Se este tipo de transporte traz benefício ou malefício para os pacientes, não sabemos. Não há um estudo dizendo se o recém – nascido que encara uma viagem nessas condições para sair de uma UTI lotada tem maior ou menor chance de morrer. Mas este é o protocolo, o fluxo de pacientes de acordo com as normas do Estado. Porém o Estado nos dá a prerrogativa de avaliar, como médico intervencionista, a condição do paciente e decidir, geralmente em conjunto com o médico assistente e médico regulador, se a transferência realmente vai beneficiar o paciente. Qual a chance de ele morrer no transporte? Vale a pena transferir um paciente assim, se a expectativa é que em breve ele não necessite mais dos cuidados de uma UTI? Essa era uma prerrogativa médica, até que a judialização da medicina tem minado a autonomia daqueles que efetivamente tem sob sua responsabilidade a vida dos pacientes.

Arrependimento no bolso

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Eu uso um aplicativo para celular chamado Pocket. Ele permite que você salve textos para ler mais tarde, “guardar no bolso”. Você está surfando na internet e se depara com um texto que parece ser interessante, mas não tem tempo para ler agora, ou não está no estado de espírito para ler agora, salva lá, e em um momento oportuno, lê. Além disso, toda semana recebo várias sugestões de artigos para ler, vários parecem interessantes e deixo na minha biblioteca.
Mas esse texto não é uma propaganda, talvez queira ser uma tentativa de ode às coincidências, destino, ou como você preferir chamar. Ou ainda uma confissão.

Ontem eu estava de plantão na ambulância. Fomos atender a um chamado dentro do posto de saúde. Uma senhora de quase 80 anos passando mal. Reclamava de mal estar geral, falta de ar e dor na parte de baixo da barriga. Era hipertensa e não tinha outras doenças. O médico do posto a conhecia bem.
Quando chegamos ela estava com um soro sem remédios e recebendo uma quantidade pequena de oxigênio suplementar. Conversava com frases um pouco entrecortadas, porém completamente lúcida. Sua pele estava fria, as pontas dos dedos já cianóticas, a circulação prejudicada, o coração batia em um ritmo normal, mas bem fraco, os pulmões normais, não tinha dor na palpação do abdome, na ausculta a barriga parecia mais “preguiçosa”, os sons estavam lentificados, a sua saturação de oxigênio com suporte era boa, não tinha outras alterações ao exame físico.
Conversando com ela, sentia um mal estar geral, no momento não reclamava de falta de ar, não tinha dor no peito. Disse que esse mal estar havia começado na véspera e se intensificado pela manhã do dia. Não teve febre, não tinha dor para urinar, havia evacuado na véspera, sem sair da sua normalidade. Não tinha outras queixas, exceto uma fraqueza geral.
Fiz um eletrocardiograma, que não havia no posto de saúde. Olhei com aquela cara de “não gostei”, mas sem ver nenhuma alteração característica de infarto, várias alterações no exame, mas nada que eu pudesse bater o martelo e falar que era um infarto e deveria ir para o cardiologista.
Na cidade há dois hospitais, um que além das especialidades básicas atende cardiologia e neurologia, outro que além do básico tem a parte de ortopedia de maior complexidade, oncologia e pediatria, basicamente. O médico do posto de saúde já havia feito contato com o segundo hospital, a médica do pronto socorro já estava ciente e havia aceitado a paciente com suspeita de um sepse – um infecção generalizada.
Não gostei muito da hipótese diagnóstica, mas visto que a paciente tinha um quadro grave com uma história e exame físico nada característicos, nenhum dado que me desse aquele momento “ah, há! já sei!”. Conversei com o médico do posto sobre o caso e o eletro, ele mantinha a suspeita de sepse. Liguei para a regulação médica, pensei em enviar uma foto do eletro para uma terceira opnião, do regulador. Passei o caso para ele e os meus achados no exame, ele também, através dos meus olhos, não viu nada que justificasse levar ao hospital referência de cardiologia. Apesar de eu continuar olhando para aquele eletro e pensar que merecia uma avaliação do cardiologista, não falei nada.
Deslocamos ao hospital, a paciente teve uma melhora na cor, sua perfusão parecia melhor, mantinha-se sem queixas. No hospital passei o caso para a plantonista e mostrei o eletro para ela. Ela olhou o exame e me disse que achava que estava suprado. O termo suprado significa uma alteração no eletro, onde uma parte do traçado está mais alta do que deveria, fugindo da linha de base, uma alteração que indica infarto agudo, com sofrimento do músculo cardíaco. Olhei novamente. Putz! Era sutil, mas não tão sutil que eu devesse deixar passar despercebido. As outras alterações, mais grosseiras mas não indicativas de infarto me haviam desviado a atenção, e sem olhar de forma sistemática para o exame, deixei passar esse sinal. Discutimos o caso, poderia ser algum artefato do exame, uma alteração da máquina, não do exame, já que este não estava bem “liso”. Ela repetiria o eletro. Imediatamente já me disponibilizei para fazer o transporte caso o exame se confirmasse, mais para ser simpático, visto que de qualquer maneira, se caracterizado o infarto, seria minha obrigação fazer a transferência para a referência. Enquanto isso, ela me passou outro caso, que já havia sido feito o contato com a regulação para transferir um paciente com uma história estranha, nada característica, mas que tinha um eletro alterado e os exames de sangue marcadores de lesão de músculo cardíaco estavam positivos. O paciente estava estável, até havia tentado algumas vezes fugir para fumar. Botamos na ambulância antes que o novo eletro da minha outra paciente houvesse sido feito.
Assim que entregamos o paciente no outro hospital, talvez uns 10 minutos depois de sair, visto a distância entre eles, fomos acionados para outra transferência, uma criança que havia nascido em uma cidade vizinha, com 27 semanas de gestação e pouco mais de 1kg. Fomos para a base, trocar a maca adulta por uma incubadora e seguir para a cidade vizinha. O transporte seria para o mesmo hospital que eu havia deixado a primeira paciente, já que era referência para pediatria.
Quando chegamos, fui perguntar para a médica de antes se o eletro havia confirmado o infarto e como estava a paciente. Sim, no eletro realmente apareceu o supra, o eletro estava mais “limpo” e era possível ver bem a alteração, porém, logo depois de fazer o exame a paciente teve uma piora importante, seguida por parada cardio-respiratória, foi tentado reanimar, mas sem sucesso. Estava morta.

Hoje abri o Pocket e abri um artigo sobre arrependimento. Falava que não somos nós que devemos nos perdoar pelo que fizemos, você não tem o poder de perdoar a si. Tampouco uma entidade superior pode perdoar. A única pessoa que pode perdoar o seu erro é aquela que foi atingida por ele. Falava também sobre diferentes formas de lidar com o arrependimento. Enquanto alguns pensadores diziam que remoer os erros é errar novamente, já que não há como mudar o passado. Nietzche disse que remoer o passado é adicionar um segundo erro ao primeiro. Outro pensador disse que quando você reza, não é deus quem muda, mas sim, você. O autor do texto traçava um paralelo com o arrependimento: você não muda o que aconteceu, mas muda a si mesmo, e com isso, idealmente, uma lição é aprendida e você pode evitar repetir o que causou o remorso.

Pelo quadro da paciente, acho muito pouco provável que ela tivesse resistido ao infarto. Talvez morresse durante a avaliação do cardiologista, ou se fosse para algum procedimento de desobustrução da artéria entupida, morresse durante o procedimento. Quem sabe? Talvez tivesse sobrevivido. Se eu tivesse prestado mais atenção ao exame, se tivesse visto o supra, se tivesse dado mais peso ao meu sentimento de “isso não está certo” e levado ao outro hospital… Tantos “e se” que não mudam em nada o desfecho deste capítulo da minha história, mas culminou com o ponto final na história dela.
Nessas horas eu gostaria de acreditar em destino, em uma força superior, em alguém que já havia traçado o meu caminho e o caminho da minha paciente. Tudo aconteceu porque deveria ter acontecido, era a hora dela, era a hora de eu aprender mais uma lição, não foi culpa minha, foi deus quem quis assim. Quão mais confortável seria!

Impotência

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Ando descrente, meio que com tudo, e isso não é novidade.

O Brasil passa por um momento de protestos e descontentamento geral com o governo, com o Estado, com as instituições públicas… Indo para a rua e dizendo que o gigante acordou (de novo). Para mim, vai apertar o soneca e voltar a dormir novamente, porque o problema não está no Planalto, nas altas cúpulas, na elite formadora de opinião e tomadora de decisões. Nosso problema somos nós. É intrínseco. A diferença entre nós, povo, e nossos governantes é a quantidade de poder. Eles são mais corruptos porque eles podem corromper mais, têm mais poder para isso.

Abraham Lincoln tem uma frase muito interessante, que apesar de ter sido dita há uns duzentos anos não poderia ser mais atual. Diz ele que praticamente qualquer homem pode suportar a adversidade, mas se você quiser testar o caráter de um homem, dê-lhe poder.

Nosso nível de corrupção é proporcional ao nosso poder. Esses dias ouvi um colega de profissão criticar o governo e depois de alguns minutos dizer que havia pedido que uma companhia que fornece medicamentos para o hospital onde ele trabalha pagasse uma passagem e inscrição para um congresso médico e que com a recusa do intermediário da empresa ele ameaçou trocar de fornecedor. “Me ajuda a te ajudar”.

Mas já estou digredindo para um ponto que não era o que eu queria quando comecei a escrever (para variar), então voltemos ao motivo de eu escrever agora.

Ontem, de plantão na rodovia, em uma base que fica na via marginal, um pouco afastada da principal, estávamos próximos ao horário da troca de plantão conversando em frente à base quando um jovem estaciona seu carro na contra-mão e sobre a calçada, na frente da base. Fui até ele pedir que retirasse o carro dali e estacionasse em outro lugar. Ele me olhou e disse que não, pois só ia levar a namorada até o ponto de ônibus, alguns metros a frente e não iria demorar. Insisti que estacionasse próximo, na rua lateral. “Mas ali é proibido estacionar”, me diz ele. Claro, porque estacionar em cima da calçada e na contra-mão pode, porque é só pra esperar o ônibus. Puto da cara e me sentindo impotente virei as costas e voltei para onde estavam meus colegas.

Liguei para a Polícia Rodoviária Federal, que é responsável pelas vias marginais, e tem base a menos de dois quilômetros da nossa base. Falaram que mandariam uma viatura para averiguar a situação.

Obviamente o ônibus chegou, a namorada se foi, e ele também, antes que a polícia chegasse. Mas não foram dois minutinhos, passaram-se bem uns vinte minutos daquela situação.

Eu queria ser um otimista como as pessoas que têm ido para as ruas manifestar-se contra o atual governo, queria acreditar que a culpa é de um partido, de um punhado de pessoas, que se fora do poder as coisas vão melhorar, que os protestos vão resultar numa moralização dos políticos. Mas como diria na terminologia do exército, estamos dando lição de moral de cueca.

Já que estamos em um dia de citações, termino com a letra de uma música do Kreator (quiçá um nome um pouco contradotório para a música, apesar de criação e destruição não serem necessariamente opostos).

Society failed to tolerate me
And I have failed to tolerate society
Still I can’t find what you adore
Inside I hear the echoes of an inner war
Nothing can take the horror from me
Your sick world the loss of all morality
My hate has grown as strong as my confusion
My only hope, my only solution
Is a violent revolution

Gente grande

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Esses dias li um texto com o qual me identifiquei. Bom, talvez não com o texto todo, mas com parte.

Era um texto sobre criação de filhos, e a geração de pequenos déspotas que está sendo criada por uma geração de mimados.

Uma das coisas que falavam era sobre elogiar a inteligência da criança com frequência, o que parece ser uma coisa saudável acaba por ter um efeito oposto ao esperado. As crianças acreditam que são inteligentes, e isso é bom, mas como medo de perder o status quo, de deixar de ser vista como inteligente e passar a ser vista como burra, a criança acaba por evitar os desafios. Afinal de contas, se eu não tentar, não vou falhar.

Acho que eu estou em uma fase parecida. Tenho um trabalho que em teoria é muito desafiador e sem rotina, mas na prática tem sido um tédio e sem desafios, sinto que estou perdendo a mão. Mas as pessoas gostam de mim e me respeitam como médico.

Por outro lado há várias outras possibilidades de emprego, voltar a clinicar e voltar a ver todos os tipos de pacientes, mas tenho medo de ter perdido a mão, de deixar coisas importantes passarem, de fazer merda e deixar de ser visto como bom profissional. E, se eu não tentar, não vou falhar, certo?

Pelo lado positivo, sinto que esse medo e esse trabalho que atualmente está entediante têm me puxado de volta aos trilhos, mudado minha visão em relação ao futuro. Acho que está na hora, na verdade tenho certeza de que já passou da hora, de sair da zona de conforto e de virar gente grande.

Sobre Dever

Geralmente tenho dificuldade com os títulos. Este não. Sabia o título desde muito antes de começar o texto. É sobre o dever que quero escrever. Não sei bem o que quero escrever, tenho ruminado o assunto há alguns dias.

Começou lendo um livro que questiona por que Buffy, a caçadora de vampiros, caça vampiros e não é uma líder de torcida. Em um mundo moderno, nascemos com a pesada liberdade de sermos o que quisermos ser. Talvez até com o dever de ser o que queremos ser. E podemos ser qualquer coisa. É essa a mensagem que tem sido ensinada. Você tem que escolher seu caminho e ser o que quiser ser, não aceitar pressões externas, siga seu coração e seja feliz. Uma visão extremamente individualista, que harmoniza com a modernidade.

Vejo tantas pessoas que ouviram essa mensagem, seja o que quiser ser, e acreditou. Nunca pensou nos meios. Afinal, os fins justificam os meios, não é? Não preciso me importar com o próximo, a menos que me importar com o próximo vá trazer algum tipo de vantagem estratégica no caminho para eu ser o que eu quero ser.

Trabalho com um motorista que me passa uma série de valores diferentes. Fazer o que tem que ser feito, o que parece ser o certo, mesmo que isso possa gerar muitos ônus e quase nenhum bônus. Parou um bêbado na nossa base, abandonou o carro no meio do pátio, bloqueando a passagem das viaturas e começou a conversar com todos, de um jeito bem inconveniente. A reação do motorista foi sem pestanejar: tomar a chave do carro e chamar a polícia. Eu não havia pensado nisso, mas quando ele falou, imediatamente concordei, não havia outro caminho. O mais fácil seria dar a chave e despachar o inconveniente ébrio o mais rápido possível, não ficar agüentando ele até a polícia chegar. Mas não tenho dúvidas que se eu desse a chave e ao virar a esquina o bêbado perdesse o controle a atropelasse uma criança, eu não conseguiria conviver com isso. Não conseguiria conviver com a idéia que isso pudesse acontecer por culpa minha, pelo meu conforto. Acho que isso é sensação de dever. Talvez em pequena escala, num exemplo pontual. Mas acho que isso é uma coisa que nós, como humanidade, temos perdido.

Não sei como foi em outras épocas, mas sempre houve as grandes histórias dos que cumpriram seu dever a despeito das probabilidades, do sacrifício, das duras penas. Estes eram idolatrados, tinham seu lugar garantido nas páginas dos livros, ou em Valhalla. Hoje nossos heróis são os que sofrem as duras penas ao sacrificar-se para passar três meses dentro de uma casa, sem trabalhar, sem produzir, sem criar, só comendo, dormindo e fofocando. E ainda por cima com o risco de sair milhonário. Aqueles que abrem mão de parte de seu bem estar em prol do próximo são vistos quase com escárnio. O bom é ser esperto, é tirar vantagem, passar por cima dos outros e o ganho pessoal.

Talvez seja por isso que o militarismo me atrai. Você não cumpre uma ordem para ganhar uma medalha, ou um aumento no salário. O sacrifício é para que aquele que rola na lama contigo possa sofrer um pouco menos, ou para que pessoas que você nem conhece sejam poupadas de algum sofrimento hipotético. Não discuto os méritos e verdades nessas palavras. Há um fator “lavagem cerebral” no militarismo. Mas a crença em cumprir o dever é o que leva os exércitos à vitória. E em que ponto nós, individualmente, somos diferentes de um batalhão? Só porque não temos ordens expressas e uma cadeia de comando? Ou porque nossas decisões diárias são menos críticas, menos imediatas? “Vou passar do limite de velocidade porque eu tenho pressa para chegar em casa”, mesmo que isso aumente drasticamente a chance de morte de eu atropelar alguém, ou colidir o carro. “Não vou pagar o imposto, porque só tem ladrão no governo”, mesmo que esse dinheiro possa fazer falta na compra de material escolar. Ou sei lá, acho que já deixo claro meu ponto.

O mundo não é preto e branco, mas na maioria das vezes não é difícil saber o certo do errado. O difícil é escolher o certo quando este não é vantajoso para o indivíduo. Acho que isso é o dever, ou o Dever. E talvez esse entendimento possa ajudar a dar sentido na vida e na nossa existência. Não consigo ser tão egocêntrico de acreditar que estou aqui só para o meu prazer. Ou talvez eu esteja errado. Ou ainda, querendo explicar o inexplicável.

Eu tinha lido, agora esqueci aonde, que a história só chama uma vez. Será que vou ser chamado? E como vou responder se for?

Leitor

Eu estava olhando as estatísticas fornecidas pelo site, estatísticas que trazem o número de visitantes e quando foi acessado o meu blog, mas sem mais informações.

Apesar de escrever para mim e não para os outros, comecei a divagar sobre o anonimato de quem me lê.

Seria alguém navegando pela web e caindo aqui sem querer?

Será um ilustre desconhecido que se identifica com o que eu escrevo e vem visitar de vez em quando?

Será uma admiradora anônima que sempre vem ver se compartilhei mais um pedaço de mim e de minha loucura?

Ou nenhuma das alternativas? Ou todas elas? E será que importa? Será que realmente quero saciar a curiosidade? Ou flertar com as idéias que alguém vai se encantar com minhas palavras e oferecer um Pulitzer? Ou uma declaração de amor? Ou uma receita de remédio controlado?

E agora?

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Tenho lido e assistido muita coisa sobre grandes feitos, homens outrora comuns enfrentando a adversidade de peito aberto. No lema dos fuzileiros navais dos Estados Unidos: “adaptar, sobressair, sobreviver”.

Pessoas que enfrentaram todas as adversidades, que tinham tudo para falhar e sobressairam. Ou pereceram com honra e glória, sem se acovardar diante das chances e das dificuldades.

O que mais me tem feito pensar são histórias de alpinistas, de exploradores antárticos e de militares. Uma das biografias mais interessantes foi a de um irlandês chamado Tom Crean, que participou de três expedições antárticas no começo do século vinte. Ele participou da tentativa de chagar ao pólo sul com o Sir Robert Scott. Este pereceu depois de atingir o seu objetivo. Aquele quase morreu na jornada de volta, uma vez que ele não participou do ataque ao pólo. Depois de retornar para casa apesar de toda a dificuldade, o que ele decide? Ir novamente para a região mais inóspita do planeta. Nessa vez com a expedição do Sir Ernest Shackleton, em mais uma ocasião, ou série de ocasiões em que a vida foi posta à prova e contra todas as probablilidades quase todos voltaram, num exemplo de coragem, resistência e loucura.

Também li sobre alguns alpinistas em suas malfadadas histórias de escaladas. Encarando o frio, a fome, a dor, a doença com o instinto de sobrevivência e pelos desígnios da Fortuna, deusa romana da sorte, voltaram para casa.

Ou os Comandos britânicos conduzindo uma missão que tinha tudo para dar errado, a ida seria complicada, a chegada ainda mais difícil, a execução da missão insana e a volta beirando o impossível. Mesmo assim não faltaram voluntários e a missão foi cumprida. Talvez com mais sorte do que juízo.

Além disso assisti um seriado, daqueles estilo pós-apocalíptico, em uma Terra dizimada por uma invasão alienígena, um punhado de humanos luta pela sobrevivência e resistência contra a invasão, contra inimigos mais numerosos, mais fortes, com melhores condições e armas. Eles lutam até chegarem em uma cidade, um grupo de sobreviventes vivendo sob os escombros de uma cidade, no subterrâneo, em relativa paz. Depois de mais de ano lutando para sobreviver, lutando um pela vida do outro, eles chegam à segurança e à paz.

E agora?

No seriado, a pediatra que por ser a única médica do grupo passou a ser médica de combate, tratando ferimentos em situações de vida ou morte se vê de volta com narizes escorrendo, dor de garganta…

O alpinista que atinge a montanha o cume desejado, após breve alegria, tem que descer, e na descida já pensa em outro cume, ou outra escalada, um pouco mais difícil, um pouco mais perigosa.

O soldado que viu vários de seus companheiros morrerem e volta para casa com a “culpa do sobrevivente”. Com a sensação de que poderia ter feito alguma coisa diferente. O soldado que depois de um ano no Afeganistão, sob fogo praticamente dia sim, dia também, comendo, dormindo, conversando, vivendo e morrendo em uma comunidade fechada, onde você se preocupa mais em proteger o próximo do que a si mesmo, em que um depende do outro, a vida do outro depende de ti, e vice-versa, depois disso, volta para o anonimato e isolamento das refeições congeladas, das camas de casal solitárias, das portas trancadas, dos trabalhos repetitivos, mundanos, sem significado.

No exército dizem que “a merda é a argamassa da união”. Quem passa pela dificuldade junto forma laços muito fortes. Mas e depois?

Depois de fazer alguma coisa que vá ecoar na história, como voltar para o mundano?

E como viver na rotina pensando no desafio? Em como ser posto à prova? Em descobrir que você pode adaptar, sobressair e sobreviver? Ou morrer tentando?

E agora?

Tempo

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Deve ser mais um post que abrange muitas coisas e fala sobre o nada, mais um texto caótico. Sempre tenho boas idéias do que escrever quando estou na cama, idéias que se perdem com os sonhos, e quando sento aqui para escrever, as idéias que vêm não me parecem tão boas, mas não consigo recuperar aquelas que se foram.

Ultimamente ando mais solitário que o normal. Sinto que me falta empatia, sei lá. Não tenho tanta vontade de conhecer pessoas novas, e as velhas, bem, as velhas em sua maioria me cansam. Salvo raras exceções.

Poucas são as que me parecem servir para um propósito, seja um prazer momentâneo, umas risadas em um momento de tédio, um pedaço de carne em um momento de tesão…

Machuquei algumas pessoas, não que fosse a intenção, mas queria dizer que me sinto mal por ter magoado. Talvez até me sinta, ou me sinta mal por não me sentir mal? Porque me sentir culpado se deixei as coisas às claras? Você culparia o sol que derreteu as asas de Ícaro? (Que comentário egocêntrico!)

Não lembro a última vez que chorei. Bom, acho que lembro. Quatro anos? Será que nenhuma vez nesse ínterim? Não, acho que não, não que eu me lembre, e acho que eu lembraria disso. Todas as situações parecem simples demais para merecer lágrimas. Rotineiras demais para tirar meu chão. Insignificantes no esquema geral das coisas. Afinal de contas, o que somos nós no Tempo? Sim, Tempo maiúsculo, não o nosso tempo quantificado, o Tempo que não pode ser quantificado, aquele que não pode ser mensurado, nem imaginado.

A busca de significado e sentido provavelmente é o que nos difere, nós humanos, dos outros animais. Conseguimos pensar no futuro, lembrar do passado e tentamos fazer no presente algo que faça sentido, considerando aquilo por que já passamos e a expectativa daquilo que podemos passar. Apesar de ser tudo que existe, o presente não existe, quando planejamos como vai ser, é o futuro, e quando chegamos nele, passa a ser passado. Acho que pensamos demais. Acho que tenho muito tempo livre.

Dizem que a vida só é completa com alguém ao seu lado. Não quero acreditar que à busca da felicidade se resume e se encontra em outra pessoa e não dentro de mim. Porque não posso eu ser completo em mim mesmo?

Completamente outro assunto, ou talvez não, lembro que alguns anos atrás quando no Brasil começaram a operar as companhias aéreas chamadas “low-cost low-fare“, de baixo custo de operação e com passagens baratas, meus pais chegaram a cogitar comprar uma passagem promocional para que eu voasse, independente do destino. Eu que desde pequeno fui fascinado pelos pássaros de metal e havia voado apenas uma vez, jovem demais para sequer lembrar de como foi, apesar de um vôo longo. Não voei para um lugar qualquer na época, mas agora, alguns anos passados, com algumas milhas nas costas, tanto de aviões quanto de helicópteros (e inclusive saltos para fora de um avião perfeitamente bom), preparo minha mochila para mais uma viagem. Um trecho curto, sequer uma hora de vôo, para um fim de semana fora, apenas levando uma mochila pequena. Antes as indas e vindas eram motivo quase de comoção, a ida ao aeroporto, a despedida com desejos de boa viagem, seguido pela espera do retorno no aeroporto. Amanhã vou levantar, pegar meu carro, dirigir até o aeroporto, deixar no estacionamento, pegar meu vôo para retornar daqui dois dias, caminhar até o estacionamento e dirigir de volta para casa, sem desejos de boa viagem, despedidas ou reencontros emocionados. Só mais uma viagem.

Imagino o que algum antepassado meu, nem precisa ser tão distante, talvez um bisavô, o que ele pensaria se eu contasse por onde já andei, quantos quilômetros já viajei, e não sou um explorador, talvez um pouco acima da média, mas com ressalvas.

Acho que penso demais, e é hora de dormir. Talvez o meu amigo Jack tenha me ajudado a escrever, mas sem dúvida não me ajudou a ficar com sono…

Agonia

Tem dias que eu fico meio louco, ou sei lá, minha loucura aflora.

Eu gosto do meu trabalho, gosto de ser médico, fui criado numa família que me ama, que sempre me apoiou, nunca me faltou nada. Mas parece que falta alguma coisa…

Eu não gosto de ficar parado. Gosto de adrenalina, acho que gosto de risco. Às vezes eu fico flertando com o desastre, cogitando como seria. Qual será que é a sensação de tomar um tiro? Uma queimada rápida, seguida da dor lacerante, da dor do osso partido, o calor do sangue escorrendo? A descarga de adrenalina sobrecarregando todos os receptores, fazendo a dor virar prazer?

Como será que é estar num acidente de carro grave, a sensação da desorientação enquanto o carro capota e gira sem controle? O barulho do metal retorcendo, o vidro estilhaçando?

A sensação de uma lâmina gelada entrando na carne? O som do músculo suculento sendo cortado?

Qual a sensação de tirar uma vida? Apontar a arma e apertar o gatilho, o borrifo de sangue o corpo inerte ao chão. Cravar a lâmina fundo, torcendo, sangrando, vendo a vida se esvair.

Eu gosto do controle, mas sou atraído pelo caos.