Reanimação. A origem da palavar, trazer novamente à vida. Subentende-se que para trazer alguém à vida novamente, este deva estar morto. A palavra em si já traz algo de milagroso, algo sobrenatural.
Em medicina usamos a sigla RCP – reanimação cardio-pulmonar. Fazer o coração voltar a bater e o pulmão voltar a ventilar. Sem sangue e oxigênio, os outros órgãos não funcionam, as células morrem, e do micro para o macro, a pessoa morre. Algumas células são mais sensíveis à hipóxia (falta de oxigênio) que outras. Assim como algumas pessoas.
Os estudos, ao contrário da televisão, mostram que sobreviver à uma parada cárdio-pulmonar, mesmo após uma RCP imediata e de qualidade, é um evento raro. Mas muito mais raro é sobreviver se a reanimação não for boa. Para isso existem cursos de imersão. Dois dias apenas pensando em PCR e em reanimação. É uma das ocasiões que você não pode pensar no que fazer, tem que saber e fazer. De cor, ou como dizemos, de maneira medular, isso é, de maneira reflexa, quase incosciente.
Durante a faculdade tive alguma experiência com paradas cardíacas e reanimação. Mais do que gostaria, menos do que gostaria. É sempre traumático, mas necessário para o aprendizado. Após a faculdade, um pouco menos de experiência. Lembro de duas. Uma antes desse curso de imersão, outra após, mesmo com um desfecho igual, o óbito, sei que o atendimento foi diferente. Um foi “de livro”, o outro sub-ótimo.
Uma das frases que mais temos medo de falar é “hoje o plantão tá calmo”. A calmaria antes da tempestade. E parece que essas palavras tem o poder de invocar ambulâncias. Eis que estamos, eu e um colega de faculdade, agora formados há pouco mais de um ano, dando plantão juntos em um pequeno hospital. A calmaria.
Conversávamos na copa, tomando um café despreocupado, sobre o seu fim de semana. Havia ido para São Paulo fazer um curso de imersão sobre reanimação em crianças, que eu acabei não fazendo junto por falta de vagas quando fiz a matrícula. Há algumas diferenças, sutis, mas importantes, no atentimento.
Eis que chega um ambulância dos bombeiros, sem avisar, com uma criança, um ano e dois meses, parada. O corpo mole, a pele pálida e os lábios roxos. Iniciamos a RCP, ventilando e massageando a criança. Vale lembrar que a massagem aqui é a massagem cardíaca, com objetivo de fazer o coração bombear, mais ou menos como aquelas bombas para encher um colchão infável, não aquela massagem nas costas sempre bem-vinda após um plantão.
Eu entrei primeiro na sala de emergência e iniciei a RCP, assim que meu colega entrou, olhei para ele e falei “assume”. Médicos têm papel de liderança dentro dos hospitais, especialmente em situações de emergência, a falta de comunicação e a falta de um líder podem prejudicar muito o atendimento. E quando há dois líderes, ordens contrárias prejudicam muito mais do que beneficiam. Por motivos óbvios, passei a liderança para ele. Com todo o conhecimento ainda fresco das aulas teóricas e principalmente práticas do curso do fim de semana, prestamos o melhor atendimento possível. Tenho certeza que fosse eu o líder, isso não teria acontecido. A criança voltou. A reanimação funcionara. Ainda precisava de suporte. Precisaria ser estabilizada, descoberta a causa da PCR e tratada. Após uma PCR é mandatório um suporte em UTI. Mantínhamos a criança sedada e com fornecíamos oxigênio por meio de um fole e um tubo em sua traquéia.
Enquanto um de nós conversava com a família, outro ligava para o hospital infantil e para o SAMU, para fazer a transferência. Eu liguei. Feito o meio de campo, era só aguardar a ambulância para levá-la para a UTI pediátrica. Foram longos minutos.
Estávamos felizes com a reanimação. Ela voltara a vida. E crianças têm um prognóstico muito melhor que adultos. Suas células têm um potencial regenerativo muito maior. Estávamos tensos. A PCR é uma situação grave, que oferece riscos ainda. Havíamos tratado uma conseqüência, não uma causa. Ela poderia parar novamente.
Uma das principais causas de parada em criança é a falência respiratória. E agora “respirávamos” por ele. Bem, pelo menos fornecíamos oxigênio em quantidade e pressão suficiente. Isso me tranquilizada. A demora da ambulância, a UTI móvel, me agoniava.
Conversei também com a família. Que, sim, era uma situação muito grave. Sim, ela estava estável, mas poderia instabilizar. Sim, ela precisaria ficar internada na UTI, passaria alguns dias no hospitál. Teria que ficar intubada, com máquinas respirando por ela, com tubos alimentando-a, com sondas. Mas, sim, eu acreditava que o pior havia passado e que a tendência era melhorar. Acreditava na recuperação. Acreditava em uma alta hospitalar precoce. Alguns dias, até tratar a causa de base. Suspeitávamos de uma pneumonia. Sim, era grave.
A ambulância chegou e realizou a transferência. Levou para a UTI. Mais tarde, ficamos sabendo que após ter sido reanimada de três novas paradas cárdio-respiratórias na UTI, não havia resistido à mais uma.
Sim, era grave. Sim, eu acreditava que o pior já havia passado.