Plantão no hospital. Liga o médico de uma ambulância, um servido de atendimento domiciliar, particular. Geralmente eles só trabalham na temporada, atendendo os argentinos com diarréia e vômito. Desta vez não. O médico me passa o caso pelo telefone, um paciente na faixa dos 60 anos, com história de AVC prévio, há alguns anos, com queda do estado geral nos últimos dias e agora está irresponsivo e com pouco açúcar no sangue, tão pouco que o aparelho, que normalmente detecta na faixa entre 20 e 600, não conseguiu detectar. Uma pessoa normal, em jejum, deve ficar perto de 100. Abaixo de 60 é considerado hipoglicemia. O limite máximo depende das condições do paciente, se é diabético ou não, se comeu ou não, etc. Mas podemos considerar 200 um limite alto. Com 300 temos que nos preocupar com uma situação de cetoacidose diabética, acima de 600 a preocupação é o estado hiperosmolar hiperglicêmico. Duas situações que exigem tratamento imediato.
Então temos um paciente com um coma hipoglicêmico, outra situação que exige tratamento imediato. Há tão pouco açúcar no sangue que o cérebro não funciona direito e “desliga”. Essa falta de glicose pode gerar graves conseqüências, inclusive a morte de neurônios. Felizmente é uma situação facilmente identificável e de fácil tratamento. É só dar açúcar. Quem usa insulina para controle da diabetes já sabe reconhecer os sintomas da hipoglicemia e tratar, comendo um doce, antes que se agrave e possa virar um coma. Mas temos um paciente com déficit motor e neurológico por causa do AVC, e agora com um coma hipoglicêmico, segundo o médico que o atende. Pergunto se foi feita glicose já, uma maneira rápida e fácil de reverter esse estado e salvar neurônios. Ele me responde que não, porque está em uma ambulância. Respondo secamente para trazer o paciente para mim. Tudo bem que é um atendimento particular, tudo tem custos, mas não aplicar um tratamento simples, efetivo, importante e barato em um paciente… Fico irritado.
Em torno de vinte minutos depois, chega a ambulância. O médico me diz que o paciente melhorou no caminho, apesar de um pouco confuso, agora conversa. Pergunto se foi medida a glicemia, ele confirma que o aparelho não detectou. Pergunto se deu “LO”, porque estes aparelhos, quando fora da faixa de detecção, mostram no visor “LO”, para “LOW”, de hipoglicemia, ou “HI”, para “HIGH”, hiperglicemia. Ele confirma que foi hipoglicemia. O paciente tem déficit motor à esquerda, está muito emagrecido, pálido, desidratado, mal ouço seu coração batendo e não ouço nada anormal em seus pulmões. Solicito ao técnico de enfermagem que faça duas ampolas de glicose 50% e 500mL de soro fisiológico.
A ambulância vai embora e eu vou preencher a ficha do paciente. Nisso o técnico vem conversar comigo, ele decidiu repetir o exame de glicemia, o HGT, aquele feito com uma gota de sangue da ponta do dedo. E deu “HI”, acima de 600. Suspendo a glicose. Peço para fazer 1000mL de soro fisiológico. Além de hidratar, o aumento na quantidade de líquido circulando nos vasos sangüíneos do paciente faz com que a glicose de dilua. Também inicio tratamento com insulina e peço exames de laboratório.
Finda esta primeira etapa, o paciente mantém as mesmas condições, com uma melhora na pressão arterial. Mas o aparelho continua acusando “HI”. Faço mais soro, pensando em hidratar e diluir, mas com medo que sua bomba hidráulica, o coração, não suporte um aumento tão brusco na quantidade de líquido e que este extravase para os pulmões, prejudicando a respiração.
Após a segunda rodada de soro e insulina, o aparelho acusa “HI” novamente. Começo a ficar com a pulga atrás da orelha. Será que o técnico está fazendo errado? Será que nosso aparelho está defeituoso? Ainda não tenho o resultado dos exames de sangue, mais precisos, estou apenas com o HGT. Confio e faço mais uma dose de insulina.
O paciente tem uma melhora clínica, está mais desperto e mais orientado. O aparelho mostra “HI”. Ligo para o laboratório, alguns exames ainda não estão prontos, mas já tenho o resultado da glicemia de quando o paciente chegou: 985.
Não sei o que mais me choca: o médico ter feito o diagnóstico errado; o médico ter feito um diagnóstico e não ter tratado; eu ter confiado tão cegamente no outro médico…
Chamo a família do paciente. Explico a situação. Estou decepcionado e bravo com a atitude do outro médico. Todos cometemos erros, faz parte da nossa condição humana. Mas um erro desses me choca. Não sei o que aconteceu, talvez um erro na leitura do aparelho dele. Porém, se esse era o diagnóstico, um coma hipoglicêmico, porquê ele não tratou na hora? Não vejo justificativa para isso. Se o erro foi na interpretação do exame, ao meu ver, é difícil confundir “HI” e “LO”. Converso com a família, digo o que foi que aconteceu, qual o diagnóstico inicial, qual o diagnóstico agora, quais as medidas tomadas e qual o plano para o seguimento. Como é fim do meu plantão, passo o caso para o médico que assume o paciente.
Não somos imunes ao erro, aos equívocos e às cagadas, mas temos que fazer o máximo para evitá-las. Tanto no excesso de exames e tratamentos, quanto na sua falta. Não consigo ver explicação para a conduta do médico da ambulância. Se era um coma hipoglicêmico, como passado no telefone, porque não tratar na hora? Pelo dinheiro? Qual o custo de uma agulha, uma seringa e uma ampola de glicose? Se é pelo dinheiro, por favor, larque a medicina e peça uma vaga no próximo filme do Stallone.
Quando me tornei médico jurei que em primeiro lugar, não faria mal aos pacientes. E é isso que eu tento fazer em cada atendimento.