Em um plantão noturno na ambulância fomos acionados para realizar uma transferência inter hospitalar, ou seja, levar um paciente de um hospital para outro. Via de regra levamos pacientes graves de um hospital pequeno, com poucos recursos para um hospital de maior porte, com os recursos necessários para o adequado tratamento do paciente.
A ocorrência dessa noite era de um recém – nascido prematuro. Havia nascido e feito uma insuficiência respiratória, precisando ser entubado e necessitando de um ventilador mecânico para auxiliar na respiração. A criança iria de um hospital regional no qual a UTI neonatal encontrava -se lotada para outro hospital que tinha uma vaga de cuidados intensivos disponível.
Chegamos no hospital de origem e a criança, com menos de 24h de vida, estava dentro da UTI. Haviam “criado” um sétimo leito na UTI de seis leitos. A criança, que havia nascido antes do tempo e por isso não tinha peso nem tamanho normais, estava em uma incubadora, estável, aceitando bem a ajuda dos aparelhos para respirar. Não usava remédios para manter a pressão normal, nem remédios para ficar sedada. Cada vez que ela puxava o ar, o aparelho “empurrava ” um pouquinho a mais de oxigênio.
Passamos para a nossa incubadora, desligamos do ventilador do hospital e levamos até a ambulância com um ambu, que é uma bolsa de ar, a qual manualmente usamos para ajudar a respiração.
Chegando na ambulância montamos nosso equipamento para transformar em um leito de UTI móvel. Incubadora ajustada, ventilador conectado e funcionando com os parâmetros necessários, bomba para infusão de solução de hidratação via venosa e aparelhos para monitoramento de sinais vitais, ou o que tínhamos disponível, já que não temos como medir de forma automática a pressão, apenas manualmente. Oximetria para monitorar o oxigênio no sangue e monitor cardíaco para acompanhar a frequência cardíaca. Tudo ligado, funcionando, paciente estável, hora de iniciar a viagem. Uma viagem de uns 150km pelas BR, naquele estado de conservação, com mais buracos que asfalto, cruzando uma serra, tudo em pista simples, praticamente sem iluminação, por um trajeto que o condutor não conhecia.
Com o início da viagem, o início dos problemas e da tensão. O oxímetro não ficava nos dedos do bebê, a trepidação da viatura fazia com que o aparelho não conseguisse ler de forma fidedigna os parâmetros. Sem ter com fixar de forma segura o bebê dentro da incubadora, cada manobra mais brusca para desviar de um buraco que surgia no asfalto escuro, a chance de o bebê se mexer, sair da posição e o tubo que o ajudava a respirar sair do lugar, obrigando a parar a viatura e entubar novamente, no ambiente nada ergonômico do salão da ambulância com uma incubadora. Depois da primeira freada, passei o resto da viagem com as mãos dentro da incubada, tentando evitar que o bebê pulasse ou corresse de um lado para outro dentro da incubadora. Com a trepidação o ventilador apitava, disparando algum alarme, visto que estava dando suporte para a respiração do bebê, o ventilador depende da”leitura” do paciente iniciando a respiração, para ele dar o suporte. Com os parâmetros baixos por causa do peso do pacientinho, a cada trecho de asfalto ruim, o ventilador não conseguia entender o que estava acontecendo, se era o bebê puxando o ar. Ao mesmo tempo que o ventilador disparava o alarme, o oxímetro, que usamos como parâmetro para o bom funcionamento do ventilador, também saía do lugar e deixava de funcionar. Assim iam alguns longos segundos até o asfalto acalmar e a trepidação diminuir e os aparelhos voltarem a funcionar à contento.
E assim se passaram as horas e os quilômetros até chegar ao hospital de destino. Um paciente grave, que acabara de passar praticamente um décimo de sua vida até então sacolejando em uma ambulância, sem o melhor suporte que poderia ser oferecido. Talvez agora, na UTI do hospital de destino ele recebesse o cuidado ideal, em uma cidade longe de casa, onde a família teria que encontrar lugar para ficar, visto que não fica acompanhante na UTI, uma mãe longe do círculo familiar e de amigos. Uma criança que, via de regra, apresenta melhora importante em 3 ou 4 dias, tendo alta da UTI, para então encarar a viagem de volta para a enfermaria do hospital de destino.
Se este tipo de transporte traz benefício ou malefício para os pacientes, não sabemos. Não há um estudo dizendo se o recém – nascido que encara uma viagem nessas condições para sair de uma UTI lotada tem maior ou menor chance de morrer. Mas este é o protocolo, o fluxo de pacientes de acordo com as normas do Estado. Porém o Estado nos dá a prerrogativa de avaliar, como médico intervencionista, a condição do paciente e decidir, geralmente em conjunto com o médico assistente e médico regulador, se a transferência realmente vai beneficiar o paciente. Qual a chance de ele morrer no transporte? Vale a pena transferir um paciente assim, se a expectativa é que em breve ele não necessite mais dos cuidados de uma UTI? Essa era uma prerrogativa médica, até que a judialização da medicina tem minado a autonomia daqueles que efetivamente tem sob sua responsabilidade a vida dos pacientes.