Passava das cinco da manhã quando a central acionou a ambulância para atender um atropelamento. Possível QRT – óbito. Durante o deslocamento, o guicho, que chegara no local, informa “respirando com dificuldade, mas respirando.”
Chegando lá, a vítima, com uniforme da empresa e marmita debaixo do braço, jazia de bruços, com uma respiração ruidosa, porém irresponsivo. Viramos ele, imobilizamos e levamos para dentro da ambulância.
Braço e perna direitos apresentam fraturas evidentes. As pupilas estão contraídas e não reagem à luz. Não responde a quaisquer estímulos. A saturação de oxigênio cai.
Começo a ventilar enquanto a enfermeira pega uma veia. Precisa ser entubado para garantir que chegue ar nos seus pulmões. É a terceira vez que preciso entubar dentro da ambulância. Das outras duas vezes, por motivos diversos, não consegui. O motorista prepara o material enquanto eu ventilo o paciente. A oxigenação não melhora.
A enfermeira consegue o acesso venoso. Faz medicações que relaxam a musculatura do paciente. Isso faz com que não consiga mais respirar sozinho, antes, mesmo que de maneira pouco eficiente, ele respirava sozinho. Agora depende de mim. Passo o tubo. Tenho quase certeza que está no lugar certo. Quando ventilo, a barriga também levanta. Será que errei? Ausculto. Parece estar no lugar certo. Peço para a enfermeira confirmar. A saturação começa a subir. Sim, esta no lugar certo.
Vamos para o hospital. Enquanto eu ventilo a enfermeira termina de remover as roupas da vítima e procurar outras lesões. Ligo para o hospital informar que estamos levando um paciente grave.
Apesar das lesões e da gravidade, entrego o paciente estável no hospital.
Voltamos para a base, quase hora da troca de turno. Enquanto limpamos a ambulância alguém pergunta se havíamos carneado algum bicho na viatura. Há sangue, compressas, embalagens e outros materiais espalhados por tudo.
Fico feliz que tudo tenha dado certo. Precisava fazer tudo direito para me reafirmar. Sim, eu consigo entubar na ambulância. Ter certeza de que fiz tudo o que precisava ser feito, e que fiz certo.
Algumas horas depois fico sabendo que ele não resistiu. Mais um óbito.
Estive pensando, acho que escrevo aqui principalmente para mim, para que eu não esqueça, mas acho que também é uma maneira de tentar demonstrar respeito àqueles que atendi. Manter vivos alguns dos últimos momentos da história dessas pessoas. Sei lá.