Geralmente tenho dificuldade com os títulos. Este não. Sabia o título desde muito antes de começar o texto. É sobre o dever que quero escrever. Não sei bem o que quero escrever, tenho ruminado o assunto há alguns dias.

Começou lendo um livro que questiona por que Buffy, a caçadora de vampiros, caça vampiros e não é uma líder de torcida. Em um mundo moderno, nascemos com a pesada liberdade de sermos o que quisermos ser. Talvez até com o dever de ser o que queremos ser. E podemos ser qualquer coisa. É essa a mensagem que tem sido ensinada. Você tem que escolher seu caminho e ser o que quiser ser, não aceitar pressões externas, siga seu coração e seja feliz. Uma visão extremamente individualista, que harmoniza com a modernidade.

Vejo tantas pessoas que ouviram essa mensagem, seja o que quiser ser, e acreditou. Nunca pensou nos meios. Afinal, os fins justificam os meios, não é? Não preciso me importar com o próximo, a menos que me importar com o próximo vá trazer algum tipo de vantagem estratégica no caminho para eu ser o que eu quero ser.

Trabalho com um motorista que me passa uma série de valores diferentes. Fazer o que tem que ser feito, o que parece ser o certo, mesmo que isso possa gerar muitos ônus e quase nenhum bônus. Parou um bêbado na nossa base, abandonou o carro no meio do pátio, bloqueando a passagem das viaturas e começou a conversar com todos, de um jeito bem inconveniente. A reação do motorista foi sem pestanejar: tomar a chave do carro e chamar a polícia. Eu não havia pensado nisso, mas quando ele falou, imediatamente concordei, não havia outro caminho. O mais fácil seria dar a chave e despachar o inconveniente ébrio o mais rápido possível, não ficar agüentando ele até a polícia chegar. Mas não tenho dúvidas que se eu desse a chave e ao virar a esquina o bêbado perdesse o controle a atropelasse uma criança, eu não conseguiria conviver com isso. Não conseguiria conviver com a idéia que isso pudesse acontecer por culpa minha, pelo meu conforto. Acho que isso é sensação de dever. Talvez em pequena escala, num exemplo pontual. Mas acho que isso é uma coisa que nós, como humanidade, temos perdido.

Não sei como foi em outras épocas, mas sempre houve as grandes histórias dos que cumpriram seu dever a despeito das probabilidades, do sacrifício, das duras penas. Estes eram idolatrados, tinham seu lugar garantido nas páginas dos livros, ou em Valhalla. Hoje nossos heróis são os que sofrem as duras penas ao sacrificar-se para passar três meses dentro de uma casa, sem trabalhar, sem produzir, sem criar, só comendo, dormindo e fofocando. E ainda por cima com o risco de sair milhonário. Aqueles que abrem mão de parte de seu bem estar em prol do próximo são vistos quase com escárnio. O bom é ser esperto, é tirar vantagem, passar por cima dos outros e o ganho pessoal.

Talvez seja por isso que o militarismo me atrai. Você não cumpre uma ordem para ganhar uma medalha, ou um aumento no salário. O sacrifício é para que aquele que rola na lama contigo possa sofrer um pouco menos, ou para que pessoas que você nem conhece sejam poupadas de algum sofrimento hipotético. Não discuto os méritos e verdades nessas palavras. Há um fator “lavagem cerebral” no militarismo. Mas a crença em cumprir o dever é o que leva os exércitos à vitória. E em que ponto nós, individualmente, somos diferentes de um batalhão? Só porque não temos ordens expressas e uma cadeia de comando? Ou porque nossas decisões diárias são menos críticas, menos imediatas? “Vou passar do limite de velocidade porque eu tenho pressa para chegar em casa”, mesmo que isso aumente drasticamente a chance de morte de eu atropelar alguém, ou colidir o carro. “Não vou pagar o imposto, porque só tem ladrão no governo”, mesmo que esse dinheiro possa fazer falta na compra de material escolar. Ou sei lá, acho que já deixo claro meu ponto.

O mundo não é preto e branco, mas na maioria das vezes não é difícil saber o certo do errado. O difícil é escolher o certo quando este não é vantajoso para o indivíduo. Acho que isso é o dever, ou o Dever. E talvez esse entendimento possa ajudar a dar sentido na vida e na nossa existência. Não consigo ser tão egocêntrico de acreditar que estou aqui só para o meu prazer. Ou talvez eu esteja errado. Ou ainda, querendo explicar o inexplicável.

Eu tinha lido, agora esqueci aonde, que a história só chama uma vez. Será que vou ser chamado? E como vou responder se for?