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Eu uso um aplicativo para celular chamado Pocket. Ele permite que você salve textos para ler mais tarde, “guardar no bolso”. Você está surfando na internet e se depara com um texto que parece ser interessante, mas não tem tempo para ler agora, ou não está no estado de espírito para ler agora, salva lá, e em um momento oportuno, lê. Além disso, toda semana recebo várias sugestões de artigos para ler, vários parecem interessantes e deixo na minha biblioteca.
Mas esse texto não é uma propaganda, talvez queira ser uma tentativa de ode às coincidências, destino, ou como você preferir chamar. Ou ainda uma confissão.

Ontem eu estava de plantão na ambulância. Fomos atender a um chamado dentro do posto de saúde. Uma senhora de quase 80 anos passando mal. Reclamava de mal estar geral, falta de ar e dor na parte de baixo da barriga. Era hipertensa e não tinha outras doenças. O médico do posto a conhecia bem.
Quando chegamos ela estava com um soro sem remédios e recebendo uma quantidade pequena de oxigênio suplementar. Conversava com frases um pouco entrecortadas, porém completamente lúcida. Sua pele estava fria, as pontas dos dedos já cianóticas, a circulação prejudicada, o coração batia em um ritmo normal, mas bem fraco, os pulmões normais, não tinha dor na palpação do abdome, na ausculta a barriga parecia mais “preguiçosa”, os sons estavam lentificados, a sua saturação de oxigênio com suporte era boa, não tinha outras alterações ao exame físico.
Conversando com ela, sentia um mal estar geral, no momento não reclamava de falta de ar, não tinha dor no peito. Disse que esse mal estar havia começado na véspera e se intensificado pela manhã do dia. Não teve febre, não tinha dor para urinar, havia evacuado na véspera, sem sair da sua normalidade. Não tinha outras queixas, exceto uma fraqueza geral.
Fiz um eletrocardiograma, que não havia no posto de saúde. Olhei com aquela cara de “não gostei”, mas sem ver nenhuma alteração característica de infarto, várias alterações no exame, mas nada que eu pudesse bater o martelo e falar que era um infarto e deveria ir para o cardiologista.
Na cidade há dois hospitais, um que além das especialidades básicas atende cardiologia e neurologia, outro que além do básico tem a parte de ortopedia de maior complexidade, oncologia e pediatria, basicamente. O médico do posto de saúde já havia feito contato com o segundo hospital, a médica do pronto socorro já estava ciente e havia aceitado a paciente com suspeita de um sepse – um infecção generalizada.
Não gostei muito da hipótese diagnóstica, mas visto que a paciente tinha um quadro grave com uma história e exame físico nada característicos, nenhum dado que me desse aquele momento “ah, há! já sei!”. Conversei com o médico do posto sobre o caso e o eletro, ele mantinha a suspeita de sepse. Liguei para a regulação médica, pensei em enviar uma foto do eletro para uma terceira opnião, do regulador. Passei o caso para ele e os meus achados no exame, ele também, através dos meus olhos, não viu nada que justificasse levar ao hospital referência de cardiologia. Apesar de eu continuar olhando para aquele eletro e pensar que merecia uma avaliação do cardiologista, não falei nada.
Deslocamos ao hospital, a paciente teve uma melhora na cor, sua perfusão parecia melhor, mantinha-se sem queixas. No hospital passei o caso para a plantonista e mostrei o eletro para ela. Ela olhou o exame e me disse que achava que estava suprado. O termo suprado significa uma alteração no eletro, onde uma parte do traçado está mais alta do que deveria, fugindo da linha de base, uma alteração que indica infarto agudo, com sofrimento do músculo cardíaco. Olhei novamente. Putz! Era sutil, mas não tão sutil que eu devesse deixar passar despercebido. As outras alterações, mais grosseiras mas não indicativas de infarto me haviam desviado a atenção, e sem olhar de forma sistemática para o exame, deixei passar esse sinal. Discutimos o caso, poderia ser algum artefato do exame, uma alteração da máquina, não do exame, já que este não estava bem “liso”. Ela repetiria o eletro. Imediatamente já me disponibilizei para fazer o transporte caso o exame se confirmasse, mais para ser simpático, visto que de qualquer maneira, se caracterizado o infarto, seria minha obrigação fazer a transferência para a referência. Enquanto isso, ela me passou outro caso, que já havia sido feito o contato com a regulação para transferir um paciente com uma história estranha, nada característica, mas que tinha um eletro alterado e os exames de sangue marcadores de lesão de músculo cardíaco estavam positivos. O paciente estava estável, até havia tentado algumas vezes fugir para fumar. Botamos na ambulância antes que o novo eletro da minha outra paciente houvesse sido feito.
Assim que entregamos o paciente no outro hospital, talvez uns 10 minutos depois de sair, visto a distância entre eles, fomos acionados para outra transferência, uma criança que havia nascido em uma cidade vizinha, com 27 semanas de gestação e pouco mais de 1kg. Fomos para a base, trocar a maca adulta por uma incubadora e seguir para a cidade vizinha. O transporte seria para o mesmo hospital que eu havia deixado a primeira paciente, já que era referência para pediatria.
Quando chegamos, fui perguntar para a médica de antes se o eletro havia confirmado o infarto e como estava a paciente. Sim, no eletro realmente apareceu o supra, o eletro estava mais “limpo” e era possível ver bem a alteração, porém, logo depois de fazer o exame a paciente teve uma piora importante, seguida por parada cardio-respiratória, foi tentado reanimar, mas sem sucesso. Estava morta.

Hoje abri o Pocket e abri um artigo sobre arrependimento. Falava que não somos nós que devemos nos perdoar pelo que fizemos, você não tem o poder de perdoar a si. Tampouco uma entidade superior pode perdoar. A única pessoa que pode perdoar o seu erro é aquela que foi atingida por ele. Falava também sobre diferentes formas de lidar com o arrependimento. Enquanto alguns pensadores diziam que remoer os erros é errar novamente, já que não há como mudar o passado. Nietzche disse que remoer o passado é adicionar um segundo erro ao primeiro. Outro pensador disse que quando você reza, não é deus quem muda, mas sim, você. O autor do texto traçava um paralelo com o arrependimento: você não muda o que aconteceu, mas muda a si mesmo, e com isso, idealmente, uma lição é aprendida e você pode evitar repetir o que causou o remorso.

Pelo quadro da paciente, acho muito pouco provável que ela tivesse resistido ao infarto. Talvez morresse durante a avaliação do cardiologista, ou se fosse para algum procedimento de desobustrução da artéria entupida, morresse durante o procedimento. Quem sabe? Talvez tivesse sobrevivido. Se eu tivesse prestado mais atenção ao exame, se tivesse visto o supra, se tivesse dado mais peso ao meu sentimento de “isso não está certo” e levado ao outro hospital… Tantos “e se” que não mudam em nada o desfecho deste capítulo da minha história, mas culminou com o ponto final na história dela.
Nessas horas eu gostaria de acreditar em destino, em uma força superior, em alguém que já havia traçado o meu caminho e o caminho da minha paciente. Tudo aconteceu porque deveria ter acontecido, era a hora dela, era a hora de eu aprender mais uma lição, não foi culpa minha, foi deus quem quis assim. Quão mais confortável seria!